O
CONCEITO DE CONVERSIBILIDADE: UMA PERSPECTIVA
HISTÓRICA
O texto completo
foi publicado em partes para facilitar a navegação no blog. Trabalho elaborado
em 1994 quando eu trabalhava no Fundo Monetário Internacional (FMI).
Maria
Celina B. Arraes
ÍNDICE
I) INTRODUÇÃO........................................................................................ 3
II) A EVOLUÇÃO
DO CONCEITO............................................................. 6
A) O
Conceito de Conversibilidade até a Criação do Fundo Monetário Internacional............................................................................... 7
B) O
Conceito de Conversibilidade no Convênio do FMI................. 9
a) sistema de taxas de câmbio
fixas.............................................. 9
b) sistema de taxas de câmbio
flutuantes.....................................
13
C) Outros
conceitos.............................................................................
16
III) AS
RESTRIÇÕES À CONVERSIBILIDADE.......................................
20
IV) SUMÁRIO E CONCLUSÕES ............................................................. 24
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................... 30
O
CONCEITO DE CONVERSIBILIDADE: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA [1]/
Maria Celina Berardinelli Arraes [2]/
"The first and basic advantage of freely
convertible currencies for the world at large is that it enables producers and
consumers everywhere to buy from the cheapest sources and sell at the highest
prices... Convertibility is thus an indispensable condition for the attainment
of maximum world output" (Haberler, 1954:12).
I) INTRODUÇÃO
1. O objetivo desse
trabalho é revisitar, de maneira didática e sob uma perspectiva histórica, a
discussão do conceito de conversibilidade monetária[3]/. Nesse sentido, na oportunidade em que o
tema conversibilidade volta à tona depois de anos de submersão, seria
importante registrar os antecedentes e estabelecer uma base de terminologia
comum. Visa-se, assim, estimular o debate
sobre as questões que estão sendo discutidas não só no Brasil -- o
grau de conversibilidade que se pretende dar ao real -- mas também em
âmbito regional -- integração monetária no MERCOSUL -- e internacional
--ampliação da jurisdição do Fundo Monetário à conta de capital do
balanço da pagamentos.
2. A volta do tema da
conversibilidade monetária às mesas de discussão tem algumas explicações. A
primeira seria o estabelecimento de bancos centrais e sistemas monetários
nacionais nas repúblicas da ex-União Soviética. A segunda, seria a retomada da
discussão em torno dos "currency boards" [4]/, no contexto da estabilização econômica
não somente nos países de economia anteriormente planificada, mas também em
países de outras regiões, como na Argentina.
3. No caso brasileiro,
especificamente, existem dois motivos principais:
primeiro, a discussão do grau de conversibilidade que se pretende
dar ao real. Esta discussão tem sido alimentada pela valorização do real em
relação ao dólar; segundo, o processo de integração ora em curso de
formação do MERCOSUL, tem também ligação direta com o problema da
conversibilidade. Afinal, por definição, só se chegará a um mercado comum caso
as moedas dos países sejam irrevogavelmente conversíveis entre elas, já que
subsistirão em um clima de total ausência de restrição cambial, até se
transformarem em uma única moeda regional.
4. Se não bastassem os
motivos já expostos, a liberalização global e generalizada ocorrida a nível da
conta de transações correntes dos países membros e a crescente importância dos
fluxos de capitais na economia mundial têm levado o Diretor Gerente do Fundo
Monetário Internacional (FMI) a indagar se o Organismo não deveria explorar a
possibilidade de estender sua jurisdição para supervisionar também restrições a
fluxos de capitais, encoranjando e apoiando sua liberalização[5]/.
5. A seguir na Seção II,
considera-se a evolução do conceito de conversibilidade sob os diversos
sistemas cambiais vigentes ao longo de século XX, com ênfase nas definições do
Fundo Monetário Internacional. Apesar da espinha dorsal do trabalho ter sido
elaborada em 1988, quando das discussões sobre a criação do Gaúcho -- Unidade
Monetária Argentina-Brasil-- foram consideradas também contribuições ao estudo
do tema surgidas nos últimos anos, principalmente no âmbito do Fundo Monetário.
Na Seção III, examinou-se as restrições a conversibilidade sob vários aspectos,
residência, região, etc, que determinam diferentes graus de conversibilidade
das moedas. Finalmente, conclui-se fazendo uma ligação das principais questões
formuladas na introdução com os diferentes conceitos analisados.
II) A EVOLUÇÃO DO CONCEITO
6. O conceito de
conversibilidade está ligado à capacidade de comandar bens e serviços fora do
território nacional, isto é, ao grau de facilidade de converter uma determinada
moeda nacional em bens e serviços estrangeiros ou em outra moeda. Tal conceito sofreu contínua metamorfose ao longo do tempo, justificando portanto uma
abordagem histórica.
7. De fato,
diferentes definições de conversibilidade são viáveis em diferentes pontos do
espaço e tempo, evoluindo conforme os sistemas cambiais. Isso não obstante,
pode-se dizer que tais definições mantêm sempre três dimensões, diferentemente
enfatizadas de acordo com as circunstâncias:
- possibilidade de uso
da moeda, ou seja, facilidade com a qual a moeda é trocada por bens e
serviços estrangeiros, o que corresponde, na prática, à ausência de restrições
cambiais e/ou comerciais e existência de amplo mercado para bens e serviços.
Esta dimensão estaria ligada a operações da conta de transações correntes do
balanço de pagamentos;
- possibilidade de transacionar
com a moeda, ou seja, facilidade de trocar a moeda por outra moeda, o que
depende da existência de mercado no qual ela seja transacionada. Esta dimensão
estaria ligada a operações da conta de capital do balanço de pagamentos; e,
- valor de troca da
moeda por bens e serviços ou por outra moeda o que significa que a taxa de
câmbio utilizada não difere substancialmente da taxa "oficial"
ou de mercado.
A) O Conceito de Conversibilidade
até a Criação do Fundo Monetário Internacional
8. Durante a vigência do
padrão ouro (pré-1914), o significado de moeda conversível era o de troca por
ouro a uma taxa fixa oficial [6]/. A moeda doméstica era emitida com base
nas reservas em ouro, fazendo com que o meio de pagamento doméstico e
internacional fosse o mesmo para os países mais importantes do comércio
mundial. Em consequência, quando havia superávit no balanço de pagamentos, aumentava-se
a quantidade de moeda em circulação no país, provocando tendências
inflacionárias e, vice-versa, quando o caso era de déficit.
9. Apesar do rigor das
regras do padrão ouro, a reação de muitos países vinha prenunciando sua
extinção desde antes da 1ª Guerra Mundial. Ao início do século XX, órgãos
fazendários, mas principalmente bancos centrais, como o Banco da Inglaterra e
Banco da França, operavam mecanismos que regulavam a oferta e demanda de ouro,
sem consequência sobre a paridade ou conversibilidade das moedas. Esta seria a
origem da função dos bancos centrais como reguladores da quantidade de moeda na
economia. No Brasil, por exemplo, funcionaram dois fundos dessa natureza: a
Caixa de Conversão (1906/14) -- que, segundo Neuhaus (1975), seguiu o modelo da
"Caja de Conversión" argentina -- e a Caixa de Estabilização (1926/29).
10. A conversibilidade das moedas em ouro
foi suspensa por todos o beligerantes durante a Primeira Guerra Mundial, com
exceção dos Estados Unidos. Acabada a
guerra, havia entretanto um obstáculo à reedição do padrão ouro: a escassez
relativa deste metal em função do nível absoluto de preços, elevado pelo
período inflacionário intra e pós-guerra.
11. A solução encontrada pela comunidade
internacional [7]/ foi recomendar que os países retirassem o
ouro de circulação e que, aqueles que não fossem importantes centros
financeiros, mantivessem suas reservas em moedas dos principais países -- as
quais eram conversíveis em ouro -- ao invés de em ouro propriamente dito. Este
sistema ficou conhecido como padrão divisa-ouro. Começou assim o
processo de distanciamento entre moeda doméstica e moeda internacional (assim
entendidas aquelas que eram conversíveis em ouro) aumentando a importância e
complexidade do conceito de conversibilidade [8]/.
12. Entretanto, pouco a pouco, os países
mais importantes foram suspendendo a conversibilidade de suas moedas sendo que
a partir da suspensão da conversibilidade da libra em ouro, em 1931, chega-se
quase a anarquia monetária com consequente formação de blocos de moedas,
inconversíveis entre si, culminando, após a Segunda Guerra Mundial, na existência
de um sem número de contas bilaterais com saldos inconversíveis [9]/.
13. O Fundo Monetário Internacional foi
criado com o objetivo de colocar alguma ordem na situação vigente. Segundo
Williamson (1983), entretanto, o Organismo conseguiu pouco durante sua primeira
década de funcionamento, porque os seus recursos eram insuficientes para ter
qualquer impacto na ordem do dia: reconstrução da Europa no pós-guerra e sua
contra-partida, o déficit crônico de dólares. O processo de volta à
conversibilidade das moedas européias se deu através da União Européia de
Pagamentos, que iniciou o processo de multilateralização das compensações entre
saldos de moedas inconversíveis com o suporte da ajuda americana do Plano
Marshall, episódio que já foi extensivamente estudado [10]/.
[1]/ Meus agradecimentos por comentários e
sugestões ao Prof. Alexandre Kafka e a Olavo Cesar de Rocha e Silva. Como de
praxe as incorreções que por acaso persistirem são de minha única
responsabilidade.
[2]/ Assessor do Diretor Executivo pelo Brasil no
Fundo Monetário Internacional e funcionária do Banco Central do Brasil. As
opiniões expressas no trabalho não devem ser atribuídas ao FMI ou ao Banco
Central do Brasil, sendo de responsabilidade somente da autora.
[3]/ O texto que serviu de base a esse trabalho foi
elaborado juntamente com Olavo Cesar da Rocha e Silva e apresentado na XXV
Reunião de Técnicos de Bancos Centrais do Continente Americano, realizada sob
os auspícios do Federal Reserve Board, em Washington, de 17 a 21 de outubro de
1988, com o título, "FONPLATA: Uma Experiência de Conversibilidade
Limitada".
[6]/ algumas moedas importantes como por exemplo a
coroa austríaca e o rublo eram consideradas conversíveis apesar de flutuarem.
[8]/ Para mais detalhes sobre a ascensão e
decadência do padrão ouro e divisa-ouro, veja Eichengreen (1985)