sábado, 12 de junho de 2021

 


O CONCEITO DE CONVERSIBILIDADE: UMA PERSPECTIVA

                                                  HISTÓRICA

 

 

 

O texto completo foi publicado em partes para facilitar a navegação no blog. Trabalho elaborado em 1994 quando eu trabalhava no Fundo Monetário Internacional (FMI).

 

 

                                          Maria Celina B. Arraes

 

 

 

 

ÍNDICE

 

 

 

I) INTRODUÇÃO........................................................................................   3

 

II) A EVOLUÇÃO DO CONCEITO.............................................................   6

        A) O Conceito de Conversibilidade até a Criação do Fundo Monetário Internacional...............................................................................   7

        B) O Conceito de Conversibilidade no Convênio do FMI.................   9

                a) sistema de taxas de câmbio fixas..............................................   9

                b) sistema de taxas de câmbio flutuantes..................................... 13

        C) Outros conceitos............................................................................. 16

 

III) AS RESTRIÇÕES À CONVERSIBILIDADE....................................... 20

 

IV)  SUMÁRIO E CONCLUSÕES .............................................................  24

 

 BIBLIOGRAFIA .......................................................................................  30

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

O CONCEITO DE CONVERSIBILIDADE: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA [1]/

 

 

                                      Maria Celina Berardinelli Arraes [2]/

 

 

                                                                "The first and basic advantage of freely convertible currencies for the world at large is that it enables producers and consumers everywhere to buy from the cheapest sources and sell at the highest prices... Convertibility is thus an indispensable condition for the attainment of maximum world output" (Haberler, 1954:12).

 

I) INTRODUÇÃO

 

1.             O objetivo desse trabalho é revisitar, de maneira didática e sob uma perspectiva histórica, a discussão do conceito de conversibilidade monetária[3]/. Nesse sentido, na oportunidade em que o tema conversibilidade volta à tona depois de anos de submersão, seria importante registrar os antecedentes e estabelecer uma base de terminologia comum. Visa-se, assim, estimular o debate  sobre as questões que estão sendo discutidas não só no Brasil -- o grau de conversibilidade que se pretende dar ao real -- mas também em âmbito regional -- integração monetária no MERCOSUL -- e internacional --ampliação da jurisdição do Fundo Monetário à conta de capital do balanço da pagamentos.

 

2.             A volta do tema da conversibilidade monetária às mesas de discussão tem algumas explicações. A primeira seria o estabelecimento de bancos centrais e sistemas monetários nacionais nas repúblicas da ex-União Soviética. A segunda, seria a retomada da discussão em torno dos "currency boards" [4]/, no contexto da estabilização econômica não somente nos países de economia anteriormente planificada, mas também em países de outras regiões, como na Argentina.

 

3.             No caso brasileiro, especificamente, existem dois motivos principais:

primeiro, a discussão do grau de conversibilidade que se pretende dar ao real. Esta discussão tem sido alimentada pela valorização do real em relação ao dólar; segundo, o processo de integração ora em curso de formação do MERCOSUL, tem também ligação direta com o problema da conversibilidade. Afinal, por definição, só se chegará a um mercado comum caso as moedas dos países sejam irrevogavelmente conversíveis entre elas, já que subsistirão em um clima de total ausência de restrição cambial, até se transformarem em uma única moeda regional.

 

4.             Se não bastassem os motivos já expostos, a liberalização global e generalizada ocorrida a nível da conta de transações correntes dos países membros e a crescente importância dos fluxos de capitais na economia mundial têm levado o Diretor Gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI) a indagar se o Organismo não deveria explorar a possibilidade de estender sua jurisdição para supervisionar também restrições a fluxos de capitais, encoranjando e apoiando sua liberalização[5]/.

 

5.             A seguir na Seção II, considera-se a evolução do conceito de conversibilidade sob os diversos sistemas cambiais vigentes ao longo de século XX, com ênfase nas definições do Fundo Monetário Internacional. Apesar da espinha dorsal do trabalho ter sido elaborada em 1988, quando das discussões sobre a criação do Gaúcho -- Unidade Monetária Argentina-Brasil-- foram consideradas também contribuições ao estudo do tema surgidas nos últimos anos, principalmente no âmbito do Fundo Monetário. Na Seção III, examinou-se as restrições a conversibilidade sob vários aspectos, residência, região, etc, que determinam diferentes graus de conversibilidade das moedas. Finalmente, conclui-se fazendo uma ligação das principais questões formuladas na introdução com os diferentes conceitos analisados.     

 

 

II) A EVOLUÇÃO DO CONCEITO

 

6.             O conceito de conversibilidade está ligado à capacidade de comandar bens e serviços fora do território nacional, isto é, ao grau de facilidade de converter uma determinada moeda nacional em bens e serviços estrangeiros ou em outra moeda.  Tal conceito sofreu contínua metamorfose  ao longo do tempo, justificando portanto uma abordagem histórica.

 

7.                  De fato, diferentes definições de conversibilidade são viáveis em diferentes pontos do espaço e tempo, evoluindo conforme os sistemas cambiais. Isso não obstante, pode-se dizer que tais definições mantêm sempre três dimensões, diferentemente enfatizadas de acordo com as circunstâncias:

 

        - possibilidade de uso da moeda, ou seja, facilidade com a qual a moeda é trocada por bens e serviços estrangeiros, o que corresponde, na prática, à ausência de restrições cambiais e/ou comerciais e existência de amplo mercado para bens e serviços. Esta dimensão estaria ligada a operações da conta de transações correntes do balanço de pagamentos;

 

        - possibilidade de transacionar com a moeda, ou seja, facilidade de trocar a moeda por outra moeda, o que depende da existência de mercado no qual ela seja transacionada. Esta dimensão estaria ligada a operações da conta de capital do balanço de pagamentos; e,

 

        - valor de troca da moeda por bens e serviços ou por outra moeda o que significa que a taxa de câmbio utilizada não difere substancialmente da taxa "oficial" ou  de mercado.

 

 

A) O Conceito de Conversibilidade até a Criação do Fundo Monetário Internacional

 

8.             Durante a vigência do padrão ouro (pré-1914), o significado de moeda conversível era o de troca por ouro a uma taxa fixa oficial [6]/. A moeda doméstica era emitida com base nas reservas em ouro, fazendo com que o meio de pagamento doméstico e internacional fosse o mesmo para os países mais importantes do comércio mundial. Em consequência, quando havia superávit no balanço de pagamentos, aumentava-se a quantidade de moeda em circulação no país, provocando tendências inflacionárias e, vice-versa, quando o caso era de déficit.

 

9.             Apesar do rigor das regras do padrão ouro, a reação de muitos países vinha prenunciando sua extinção desde antes da 1ª Guerra Mundial. Ao início do século XX, órgãos fazendários, mas principalmente bancos centrais, como o Banco da Inglaterra e Banco da França, operavam mecanismos que regulavam a oferta e demanda de ouro, sem consequência sobre a paridade ou conversibilidade das moedas. Esta seria a origem da função dos bancos centrais como reguladores da quantidade de moeda na economia. No Brasil, por exemplo, funcionaram dois fundos dessa natureza: a Caixa de Conversão (1906/14) -- que, segundo Neuhaus (1975), seguiu o modelo da "Caja de Conversión" argentina -- e a Caixa de Estabilização (1926/29).

 

10.           A conversibilidade das moedas em ouro foi suspensa por todos o beligerantes durante a Primeira Guerra Mundial, com exceção dos Estados Unidos.  Acabada a guerra, havia entretanto um obstáculo à reedição do padrão ouro: a escassez relativa deste metal em função do nível absoluto de preços, elevado pelo período inflacionário intra e pós-guerra.

 

11.           A solução encontrada pela comunidade internacional [7]/ foi recomendar que os países retirassem o ouro de circulação e que, aqueles que não fossem importantes centros financeiros, mantivessem suas reservas em moedas dos principais países -- as quais eram conversíveis em ouro -- ao invés de em ouro propriamente dito. Este sistema ficou conhecido como padrão divisa-ouro. Começou assim o processo de distanciamento entre moeda doméstica e moeda internacional (assim entendidas aquelas que eram conversíveis em ouro) aumentando a importância e complexidade do conceito de conversibilidade [8]/.

 

12.           Entretanto, pouco a pouco, os países mais importantes foram suspendendo a conversibilidade de suas moedas sendo que a partir da suspensão da conversibilidade da libra em ouro, em 1931, chega-se quase a anarquia monetária com consequente formação de blocos de moedas, inconversíveis entre si, culminando, após a Segunda Guerra Mundial, na existência de um sem número de contas bilaterais com saldos inconversíveis [9]/.

 

13.           O Fundo Monetário Internacional foi criado com o objetivo de colocar alguma ordem na situação vigente. Segundo Williamson (1983), entretanto, o Organismo conseguiu pouco durante sua primeira década de funcionamento, porque os seus recursos eram insuficientes para ter qualquer impacto na ordem do dia: reconstrução da Europa no pós-guerra e sua contra-partida, o déficit crônico de dólares. O processo de volta à conversibilidade das moedas européias se deu através da União Européia de Pagamentos, que iniciou o processo de multilateralização das compensações entre saldos de moedas inconversíveis com o suporte da ajuda americana do Plano Marshall, episódio que já foi extensivamente estudado [10]/.

 



  [1]/  Meus agradecimentos por comentários e sugestões ao Prof. Alexandre Kafka e a Olavo Cesar de Rocha e Silva. Como de praxe as incorreções que por acaso persistirem são de minha única responsabilidade.

  [2]/  Assessor do Diretor Executivo pelo Brasil no Fundo Monetário Internacional e funcionária do Banco Central do Brasil. As opiniões expressas no trabalho não devem ser atribuídas ao FMI ou ao Banco Central do Brasil, sendo de responsabilidade somente da autora.

  [3]/  O texto que serviu de base a esse trabalho foi elaborado juntamente com Olavo Cesar da Rocha e Silva e apresentado na XXV Reunião de Técnicos de Bancos Centrais do Continente Americano, realizada sob os auspícios do Federal Reserve Board, em Washington, de 17 a 21 de outubro de 1988, com o título, "FONPLATA: Uma Experiência de Conversibilidade Limitada".

  [4]/  Para uma comparação dos casos de Hong Kong, Estônia e Argentina veja Bennett (1994).

  [5]/  Ver Camdessus (1994a e 1994b)

  [6]/  algumas moedas importantes como por exemplo a coroa austríaca e o rublo eram consideradas conversíveis apesar de flutuarem.

  [7]/  Realizou-se uma conferência econômica mundial em Gênova, Itália, em 1922.

  [8]/  Para mais detalhes sobre a ascensão e decadência do padrão ouro e divisa-ouro, veja Eichengreen (1985)

  [9]/  Registre-se que no caso brasileiro, até bem pouco tempo subsistiam alguns convênios bilaterais, resquícios do período de inconversibilidade generalizada da década dos cinquenta.

  [10]/  Para um estudo recente veja Jacob J. Kaplan e Gunther Schleiminger (1989).