sábado, 12 de junho de 2021

 


B) O Conceito de Conversibilidade no Convênio do FMI

Parte de trabalho elaborado em 1994 quando eu trabalhava no FMI

            

a) sistema de taxas de câmbio fixas

 

14.           O sistema de câmbio fixo implica uma maior probabilidade de intervenção do governo na defesa da taxa, seja atuando no mercado, seja estabelecendo restrições cambiais à compra e venda de divisas. Como concebido originalmente, o FMI era um "pool" de moedas de seus países membros que poderia ser utilizado para apoiar a obrigatoriedade de manter a taxa de câmbio fixa com conversibilidade, isto é, sem introdução de restrições cambiais sobre operações da conta de transações correntes ou estabelecimento de taxas múltiplas de câmbio.

 

15.           Sendo assim, um país, que estivesse sofrendo de perda de reservas, poderia "comprar" com sua própria moeda outras moedas de que necessitasse para fazer face a pagamentos internacionais, enquanto procedia ao ajustamento interno. Por outro lado, se um país, por superávit de balanço de pagamentos, acumulasse saldos de uma determinada moeda, que o mercado não fosse capaz de absorver, o país emissor de tal moeda seria obrigado a dar conversibilidade, mas somente aos saldos acumulados pela autoridade monetária. O objetivo maior era eliminar as restrições a pagamentos e, portanto, promover o comércio e crescimento mundiais que haviam sido prejudicados desde antes da guerra por desvalorizações competitivas e inconversibilidade das moedas.

 

16.           Tendo como base o arcabouço descrito no parágrafo anterior, os países que se reuniram em Bretton Woods, em 1944, concordaram sobre a necessidade de existência de um código de conduta para reger o relacionamento entre eles, pois a manutenção do que foi chamado na literatura de "caos monetário" poderia levar a grande retrocesso no desenvolvimento da economia mundial. Vale citar o Artigo I, item (iv) do Convênio Constitutivo do Organismo, aquele mais ligado ao conceito de conversibilidade dentre os objetivos do Organismo:

        "To assist in the establishment of a multilateral system of payments in respect of current transactions between member and in the elimination of foreign exchange restrictions which hamper the growth of world trade"(grifo nosso).

 

17.           Para atender este propósito, os países fundadores do FMI dotaram o Organismo de funções regulatórias e se comprometeram a cumprir determinadas obrigações. O Artigo IV do Convênio original tratava das obrigações relativas à manutenção do regime de taxas de câmbio estáveis, mas ajustáveis dentro de determinadas condições [1]/. O Artigo VIII estava ligado ao objetivo de evitar as restrições cambiais, cabendo aos países membros dar conversibilidade a suas moedas. O Artigo XIV, por sua vez, tratava dos direitos de manter restrições em casos especiais.

 

18.           Do ponto de vista formal, o Convênio Constitutivo original do FMI cristalizou uma série de conceitos sobre conversibilidade. Com a instituição do sistema de taxas de câmbio estáveis, mas reajustáveis desde que permitido pelo FMI, a idéia de conversibilidade deixou de ser relacionada à possibilidade de troca de uma determinada moeda por ouro, passando à troca de uma moeda por outra, a uma taxa de câmbio de paridade, com o spread permitido de 1 % para mais ou menos.  Entretanto, como na época do padrão ouro, a possibilidade de utilização das moedas, sem restrições, continuava inerente à idéia de conversibilidade.

 

19.           O conceito básico de conversibilidade, previsto no Convênio Constitutivo do FMI, foi consubstanciado no artigo VIII, pelo qual os países se comprometiam:

        i) a evitar restrições a pagamentos por transações correntes (seção 2);

     ii) a evitar a aplicação de práticas monetárias discriminatórias (seção       3); e

        iii) a converter saldos de suas moedas em poder de autoridades monetárias de outros países (seção 4).

 

20.           Mais especificamente, os países membros deveriam:

 

        -permitir que sua moeda fosse utilizada por seus residentes para efetuar pagamentos por transações correntes e não deveriam impedir que seus residentes obtivessem qualquer moeda dos demais países membros que fossem necessárias para efetuar pagamentos pelo mesmo conceito. Esta seria a chamada conversibilidade pelo mercado;

 

        -abster-se de utilizar práticas monetárias discriminatórias ou taxas múltiplas de câmbio, em relação a operações em transações correntes,   apesar de a definição prevista no Convênio Constitutivo do Fundo ser um pouco mais abrangente, incluindo um certo montante de pagamentos por conceito de amortização;

 

        -converter saldos de suas moedas, exclusivamente em poder das autoridades monetárias de outros países membros, na moeda do país solicitante ou em ouro. Esta seria a chamada obrigação de conversibilidade oficial.

 

21.           Note-se que, durante a vigência do sistema de taxas fixas de câmbio, não surgiu o caso de que um país tivesse invocado o direito de solicitar conversões oficiais, por outros países membros, de saldos de moedas em seu poder. Isso não obstante, este preceito era a essência do sistema multilateral de pagamentos que se pretendia desenvolver, pois, representava a garantia de conversibilidade. O FMI reconheceria, ao longo de seu Convênio original, diversos outros tipos de conversibilidade, de uma maneira menos formal que a da seção anterior e, geralmente, relacionados a objetivos específicos.

 

 

 

                b) sistema de taxas de câmbio flutuantes

 

22.           A adoção de um regime de taxa de câmbio flutuante permite o estabelecimento de um preço de equilíbrio e portanto dispensa a necessidade de acumulação de reservas internacionais e a utilização de restrições cambiais como meio de racionar divisas. No extremo, sob um sistema puro de taxas de câmbio flutuantes, as moedas seriam conversíveis por definição. Como muitas vezes acontece, a teoria na prática é outra, seja por imperfeições do mercado, seja por intervenção governamental.

 

23.           A Segunda Emenda ao Convênio Constitutivo do Fundo Monetário Internacional, aprovada em 1978, consagrou o sistema de taxas de câmbio flutuantes. Quanto às obrigações dos países membros em relação à conversibilidade foram as seguintes suas principais consequências:

 

        - permanece inalterada a obrigação de manter a conversibilidade através dos mercados;

 

        - subsiste a obrigação daqueles países membros sujeitos ao Artigo VIII de efetuarem conversão oficial de saldos de suas moedas quando solicitado por autoridades monetárias de outros países membros, mas, na prática, não se pode invocar [2]/.

 

24.           O conceito de conversibilidade sob o sistema de taxas de câmbio flutuantes fica mais fluído porque tem enfraquecido o seu aspecto de valor de troca que existia sob os outros sistemas de câmbio. A rigor, desde que sejam permitidas grandes variações nas taxas de câmbio, fica menos provável que os países lancem mão de restrições. De fato, os conceitos de moeda conversível foram praticamente eliminados do Convênio Constitutivo do FMI. Em contrapartida, foi introduzida uma definição de moeda livremente utilizável, Artigo XXX (f), que enfatiza os aspectos de uso e transacionabilidade da moeda:

 

        "A freely usable currency means a member's currency that the Fund determines (i) is, in fact, widely used to make payments for international transactions, an (ii) is widely traded in the principal exchange markets."

 

25.           O conceito de moeda de livre uso tem função importante nas operações de assistência financeira do Fundo. Este conceito tenta suprimir a injustiça que decorria do fato de que, conforme a versão inicial do Convênio, não havia obrigação dos países membros de trocarem suas moedas que fossem compradas ao Fundo (mesmo que não fosse internacionalmente aceita) por uma outra que servisse aos compradores para fazer face a seus problemas de pagamentos. A partir da Segunda Emenda ao Convênio, se o FMI vender uma moeda que não é classificada como de livre uso, seu emissor deve trocá-la quando requisitado pelo comprador [3]/.

 

26.           Por exemplo, o real não é considerado moeda de livre uso pelo Fundo. Isso não obstante, se a situação econômica e financeira do Brasil  permitir, os haveres em reais em poder do Fundo podem ser incluídos no seu orçamento operacional [4]/. Neste caso, algum país que esteja recebendo assistência financeira do Fundo poderá receber a moeda brasileira. O Banco Central do Brasil terá a obrigação de trocar esse montante por moeda de livre uso. Entretanto, essa obrigação se restringe ao saldo de moeda comprada ao Fundo, não se constituindo em obrigação geral de conversibilidade.

 



  [1]/  O Artigo IV definia o numerário do sistema monetário internacional como ouro ou o dólar americano de 1944. Todos os membros deveriam declarar a paridade de suas moedas e mantê-las dentro do limite de 1% a mais ou a menos. A paridade poderia ser modificada em caso de ocorrência de desequilíbrio fundamental de pagamentos, consultado o FMI. Entretanto, o Fundo não poderia negar aprovação no caso de variação de menos de 10 %, e no caso de variação maior que 10%, o Fundo deveria decidir em setenta e duas horas. Alterações não autorizadas da paridade poderiam tornar o país membro inelegível para usar recursos do Fundo.

  [2]/   O Relatório da Diretoria Executiva à Junta de Governadores que encaminhou a Segunda Emenda contém os termos do acordo. Basicamente, os países se comprometem a não invocar a conversibilidade oficial, pelo menos enquanto for mantido o sistema de paridades flutuantes. Para mais detalhe veja Gold (1981).

  [3]/  Para mais detalhes veja Gold (1978) págs 55-63.

  [4]/  O orçamento operacional do FMI determina o recursos que estarão disponíveis para assistência financeira a cada trimestre do ano. Ao final dos anos setenta e até 1982, o Brasil foi várias vezes incluído no orçamento operacional do Fundo.


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