sábado, 22 de setembro de 2018




REMESSAS DO EXTERIOR EM REAIS – FATOS.

Maria Celina B. Arraes (1)

O Banco Central do Brasil aprovou nova Circular 3914/2018 sobre pequenas remessas do exterior em reais. Qual é a novidade? Provavelmente essas operações serão ainda mais facilitadas com a entrada em vigor da circular. A partir de então a organização transferidora, seja ela instituição financeira ou não, poderá consolidar várias ordens de pagamento, remete-las de forma agregada a uma instituição financeira no Brasil e fazer somente uma operação de câmbio no País, desde que os montantes originais de cada ordem sejam de até R$ 10 000,00. Os pagamentos aos recipientes serão feitos em reais. Possibilita uma redução do custo de transação para a pessoa que estiver recebendo a remessa.

Esse é mais um fator de fortalecimento da cidadania financeira e de combate pobreza no Brasil, uma vez que, na maioria das vezes, os destinatários de remessas internacionais são brasileiros que necessitam desses recursos para manutenção, estudos ou aquisição de uma moradia digna. Como citado no comunicado de imprensa do Banco Central essa medida é coerente com as orientações do G-20 e da ONU – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável - no sentido de diminuir o custo de remessas.

As pequenas remessas em reais são possíveis desde 2008. Foram permitidas no escopo de uma liberalização de operações em reais necessárias para possibilitar a operação do Sistema de Moeda Local com a Argentina (posteriormente com Uruguai e Paraguai). Entre vários normativos, o mais importante foi a lei n° 11.803/2008, que permitiu aos bancos autorizados a operar no mercado de câmbio dar cumprimento a ordens de pagamento em reais recebidas do exterior, mediante a utilização de recursos em moeda nacional mantidos em contas de depósito de titularidade de instituições bancárias domiciliadas ou com sede no exterior [mais detalhes vejam meus artigos citados ao fim (2)].

Com as devidas ressalvas sobre a necessidade de simplificação num infográfico, a publicação do Banco Central no Linkedin, faz parecer que anteriormente essas remessas não eram possíveis. Ora todas as cartilhas de pequenas remessas publicadas desde 2009, contemplam essa possibilidade. O que ocorreu foi uma muito bem-vinda desburocratização do processo!


O respeito a história das instituições contribui para o seu fortalecimento.
_______________________________________________________________________
(1)     Diretora de Assuntos Internacionais do Banco Central do Brasil (2008-2009).
(2)     Revista da Procuradoria Geral do Banco Central do Brasil (PGBC). Cooperação Financeira Internacional do Banco Central do Brasil. Vol 9, N. 2, Dez 2015, pags. 17-44.
Revista do Conselho Regional de Economistas do DF. Conversibilidade a Chinesa - – N. 57, Set/Dez 2015 e Jan/Abr 2016, págs. 07-13.
Revista do Conselho Regional de Economistas do DF.  Sistemas de Pagamento em Moeda Local. N. 54, Set/Dez 2014 págs 31-36.



terça-feira, 11 de setembro de 2018




Convertibility Chinese style (Translation of article published in December 2016 at Linkedin)

                                                                                                                      Maria Celina B. Arraes (1)


News published in the Brazilian and international press at the end of 2016 indicates that the Chinese government intended to impose restrictions on the outflow of capital from China. 

This move comes just two months after the International Monetary Fund's (IMF) decision to include the Chinese currency in the basket of currencies that determines the value of Special Drawing Rights (SDRs), with greater weight than that of the yen and the pound. What would be the connection between these two facts? Controls of capital and international currency?

The inclusion of a currency in the SDR basket means the recognition of the importance of the issuing economy in the global economy and the importance of the use of that currency in international transactions. It should be noted that the terms freely usable currency, international currency, global currency, convertible currency and capital account opening have often been used as almost synonymous, although the concepts are not exactly the same.

The IMF (3) clarifies that a currency can be widely used and widely traded, even if it is subject to some restrictions in the issuing country's capital account of the balance of payments. On the other hand, a fully convertible currency is not necessarily widely used and widely traded, since its use basically depends on the decision of other countries rather than of the issuing country (as is the case with the opening of the capital account) .

A convertible currency may facilitate its use and exchange, but does not ensure the preference of nonresidents to use it in their transactions. The internationalization process of a given currency is evolutionary and market driven. The concept of convertibility is related to official conditions of the international use of that currency, which can be affected by government policies.

A specific case of recognition of the importance of the use of a currency in international transactions is its inclusion in the basket that reckons the value of the SDR.  The first test for the possible inclusion of a currency in the basket is the importance of the export share of the issuing country in world trade. It is considered a necessary but not sufficient condition. After that, the IMF verifies the importance of the currency in the following aspects:

(i)  The participation as component of the official international reserves of the countries;

(ii) The composition of deposits held in international banks by non-banks (data accompanying the BIS); and

(iii) The use of the currency in the issuance of international securities.

Notwithstanding,  the President of the Chinese central bank told the IMF Monetary and Financial Committee meeting, in April 2015, that due to the lessons learned in managing the global financial crisis, China will adopt the concept of managed convertibility. This means that China will reserve the right to continue to manage its capital account in order to limit the risks arising from capital flows and to keep the value of the currency stable and to obtain a secure financial environment.

The inclusion of the renminbi in the SDR basket is the recognition of the importance of the Chinese economy in the global economy, particularly in terms of participation in international trade, as well as of the deliberate policy of gradually opening Chinese financial markets to foreign capital and investment by non-residents. At that time of decision-making in October 2015, this policy was considered sufficient by the IMF Board, although, in financial terms, the renminbi does not have the same importance as the other currencies component of the basket.

The measures announced at the end of 2016 may jeopardize the importance of the renminbi as the dollar's rival, after the IMF's vote of confidence that the Chinese government would continue its gradual policy of liberating the use of the renminbi in international transactions. However, this change in policy is consistent with the announcement by the President of the Chinese central bank at the meeting in April 2015 and will not cause any change in the composition of the basket. Composition reviews take place only every five years and before the next one, there will be enough time to determine whether the controls imposed were short-term or not, and how they affected the use and financial transactions in renminbi.

Finally, it should be emphasized that currency convertibility is a concept related to its official use while internationalization / globalization is related to its use by the private sector. The decision to use the currency internationally depends on a number of factors, not just on the IMF's decision to include the currency in the SDR basket.


(1) Specialist in international monetary system, UNDP consultant for inclusive markets and financial inclusion, Director of International Affairs of the Central Bank of Brazil (2008-2009)
(2) Against capital flight, China hampers remittances from companies abroad. James T. Areddy and Lingling Wei | Dow Jones Newswires, Shanghai
(3) It is notable that the concept of a freely usable currency concerns the current international use and trading of currencies, and is distinct from whether a currency is either freely floating or fully convertible. INTERNATIONAL MONETARY FUND, Oct. 2010, Review of the Method of Valuation of the SDR. INTERNATIONAL MONETARY FUND, Aug. 2015, Review of the method of valuation of SDR- Initial Considerations.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018


EM COMEMORAÇÃO AOS 10 ANOS DO SISTEMA DE PAGAMENTOS EM MOEDA LOCAL BRASIL ARGENTINA. 2008-2018

Seção introdutória de nota preparada pela equipe do Departamento de Assuntos Internacionais do Banco Central do Brasil sob orientação de Maria Celina Arraes, Diretora de Assuntos internacionais 2008-2009.

Em 3 de outubro de 2008, o Banco Central do Brasil iniciou, conjuntamente com o Banco Central da República Argentina,as operações do Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML), passando a oferecer mais uma opção para pagamentos do comércio exterior realizado entre os dois países. O SML tem como objetivo principal reforçar o processo de integração regional, através de vários fatores, como a possível redução dos custos de transação, o fortalecimento do mercado de câmbio bilateral e a incorporação de novos agentes, nos dois países, às atividades de comércio externo.
A nova possibilidade de utilização de moedas locais para o pagamento das transações comerciais entre Brasil e Argentina resulta de iniciativa tomada pelos bancos centrais envolvidos, uma vez que tal utilização não seria certamente viável, hoje, a partir da evolução das condições determinadas estritamente pelos mercados internacionais de câmbio e de pagamentos, consideradas a atual posição internacional das duas economias e de suas respectivas moedas. É reconhecida a existência de ampla discussão na literatura econômica recente sobre os fatores que afetam a escolha da moeda de denominação no comércio internacional, bem como os possíveis efeitos decorrentes dessa utilização. A rápida menção feita sobre esse aspecto procura apenas comparar situações decorrentes de evoluções de mercado, onde mudanças, de caráter permanente, ocorrem de forma necessariamente gradual, com o mecanismo institucional, mais limitado, mas tendo a sua relevância e eficiência, proposto por iniciativas de bancos centrais, como é o caso do SML.

1.      Utilização da moeda nacional nas transações de comércio exterior
As possibilidades de uso da moeda de denominação no comércio internacional são: moeda do exportador, moeda do importador e a denominada moeda veículo, que é emitida por terceiro país, não envolvido na transação bilateral. A experiência histórica mostra que uma série de fatores explica a utilização de moedas específicas de denominação no comércio internacional, por parte de vários países. E revela também que mudanças nessa utilização ocorrem de forma gradual, como pode ser exemplificado no caso da libra esterlina que, apesar do declínio da importância econômica do Reino Unido a partir da 1ª Guerra Mundial manteve-se, até a 2ª Guerra, como moeda internacional, papel exercido à época juntamente com o dólar norte americano. A moeda norte americana permanece desde então como principal moeda, sendo utilizada por vários países em seu comércio internacional e sendo secundada pelo euro, desde a sua criação, dez anos atrás. Os países tendem a manter em suas reservas internacionais maiores parcelas nas moedas nas quais realizam suas transações comerciais e financeiras externas.
A escolha da moeda de denominação das transações de comércio internacional tem implicações macro e microeconômicas. Para as empresas, a escolha afeta a sua maximização esperada de lucros. Neste sentido, a utilização de uma moeda no comércio internacional está associada:

(i)                         ao tamanho do país cuja moeda é utilizada, bem como à profundidade e importância de suas relações de comércio com outros países;
(ii)                       aos custos de transação, inclusive custos de compra e venda das moedas. As moedas mais transacionadas tendem a ter menores custos e, por inércia, também tendem a manter essa posição;
(iii)                     às moedas utilizadas nas transações por outros produtores, dado que empresas não querem se distanciar das estratégias adotadas por seus concorrentes, principalmente em indústrias cujos produtos são substitutos próximos;
(iv)                     à composição dos bens importados e exportados – quanto mais diferenciados forem os bens, por exemplo, maior a possibilidade de uso da moeda do exportador como denominação;
(v)                       aos aspectos específicos da volatilidade macroeconômica do país. A existência de mercado financeiro doméstico desenvolvido também contribui favoravelmente para o uso da moeda no comércio internacional;
(vi)                     a mecanismos de hedge contra flutuações cambiais que possam afetar sua receita.
Adicionalmente, aspectos como a presença de mercados bem organizados e poder de barganha das empresas podem afetar a moeda de denominação da transação. Nas vendas de grandes volumes, o exportador tem maior capacidade para denominar a transação na moeda de sua preferência. Segundo Goldberg e Tille, (2009), o dólar é a principal moeda de denominação nas transações de bens negociados nos mercados mais formais ou onde ela predomina com preço de referência.
No plano macroeconômico, teoricamente, a denominação do comércio internacional afeta os mecanismos de transmissão de política econômica e os ciclos de negócios, como apresentado nos trabalhos de Bachetta (2005) e Oi (2004). A literatura recente sobre as implicações da moeda de denominação e das decisões de preços sobre a política monetária aponta que, nos países cujas moedas são utilizadas na denominação das transações, os preços são relativamente estáveis. Em países cujas moedas não são utilizadas, os preços dos tradables se movem (em moeda local) com as oscilações da taxa de câmbio e, como resultado, o consumo responde a mudanças nos preços relativos induzidas pela variação cambial.
Anteriormente, no Brasil, a própria legislação impunha obstáculos à maior utilização da moeda nacional nas transações de comércio exterior. Originadas em um período de necessidade de obtenção de divisas para fazer frente a problemas de balanço de pagamentos, as normas então vigentes buscavam incentivar a entrada de moeda conversível através de rigorosos controles sobre as operações cambiais. Adicionalmente, o cenário de elevadas taxas de inflação resultaram na perda das funções de medida e de reserva de valor, inviabilizando sua utilização para os pagamentos de operações maior prazo, características do comércio internacional. Com a melhora dos fundamentos da economia e a redução da vulnerabilidade externa, a moeda nacional passou a cumprir com as funções clássicas da moeda. Isto permitiu o início de um processo de modificação na sua legislação e regulamentação cambiais e de comércio exterior visando desburocratizar os procedimentos e reduzir os custos de transação.
O recebimento em reais das exportações brasileiras de bens e de serviços foi autorizado em 2007[1], permitindo às empresas brasileiras faturar suas vendas em moeda local. Neste mesmo ano, a emissão de registros de exportação para recebimento em moeda nacional passou a ser admitida independentemente do destino ou do produto[2]. Até então, o recebimento de exportações em reais somente era possível para o comércio fronteiriço de produtos específicos, em municípios limítrofes determinados, e para a venda de bens ou serviços para mutuários de projetos financiados por organismos sub-regionais de desenvolvimento, mediante o uso de recursos originariamente aportados pelo Brasil, em moeda nacional.[3]
Por sua vez, a Lei n° 11.803/2008 permitiu aos bancos autorizados a operar no mercado de câmbio dar cumprimento a ordens de pagamento em reais recebidas do exterior, mediante a utilização de recursos em moeda nacional mantidos em contas de depósito de titularidade de instituições bancárias domiciliadas ou com sede no exterior. A Resolução CMN n° 3.657/ 2008 eliminou, por sua vez, a restrição de recebimento em reais de receita de exportação registrada em moeda estrangeira. Estas medidas marcam o início de um processo internacionalização do real.
Neste sentido, as discussões acerca do desenvolvimento de um canal de fácil liquidação das transações comerciais em moeda local entre Brasil e Argentina tiveram origem, em 2005, no reconhecimento da relevância do fluxo de comércio bilateral. Segundo dados do MDIC, em 2007 e 2008, a Argentina foi o segundo maior destino de exportações brasileiras, sendo a quase totalidade das operações liquidadas em dólares americanos. Na oportunidade, verificou-se também a indisponibilidade de instrumentos financeiros de baixo custo para transações peso/real e as dificuldades e custos associados à liquidação de transações em moeda local.
A proposta de desenvolvimento de um mecanismo de liquidação utilizando as moedas nacionais teve como principal objetivo, avançar no processo de integração regional. O estabelecimento de uma cotação entre as moedas regionais, uma das bases do funcionamento do SML, foi um dos primeiros passos no processo de integração europeu. Adicionalmente, os agentes econômicos só podem se beneficiar plenamente da maior integração entre os países e do movimento livre de bens e serviços se houver uma estrutura eficiente de liquidação das transações. Nos processos de integração regional, a disponibilidade de uma infraestrutura que permita a ocorrência de transações comerciais a custos mínimos é fator primordial para o seu sucesso. Diante de sua importância, ganham destaque iniciativas desenvolvidas em todo o mundo visando à modernização dos canais de liquidação entre países.
Referências Bibliográficas
Bacchetta, P. e van Wincoop, E. (2005). “A theory of the currency denomination of international trade.” Journal of International Economics, (December) 67(2), pp. 295-319.
Einchengreen, B. (2009), “The dollar dilemma: the world’s top currency faces competition". Foreign Affairs, September/October.
Einchengreen, B. e Flandreau (2008), The rise and fall of the dollar, or when did the dollar replace sterling as the leading international currency?, NBER Working Paper 14154, July.
Goldberg, L. (2009) “Currency invoicing of international trade”. The Euro at ten: the next global currency?. Pisani-Ferry & Posen (eds.), Perterson Institute.
Goldberg, L; Tille, C. (2005) “Vehicle currency use in international trade”. Journal of International Economics, 76, pp. 177-192.
Goldberg, L; Tille, C. (2009) The dynamics of international trade invoicing. memo
Kamps, A. (2006) The Euro as invoicing currency in international trade. Working Paper 665, European Central Bank.
Lane, P. (2001) “The new open economy macroeconomics: a survey”, Journal of International Economics, 54 (2), pp. 235-266.
Ligthart, L., Silva, J. (2007) Currency invoicing in international trade: a panel data approach. Tilbug University discussion paper 2007-25.
Obstfeld, M, Rogoff K. (1995) “Exchange rate dynamics redux”. Journal of Political Economy, 103, 624–660.
Oi, H et al (2004) “The choice of invoicing in international trade: implications for the internationalization of the Yen”. Institute for Monetary and Economic Studies, Bank of Japan, March.


[1]Resolução Camex nº 12/2007
[2]Portaria Secex n° 7, de 2007
[3]Outras medidas incluem a Lei n° 11.803/2008, que permitiu aos bancos autorizados a operar no mercado de câmbio dar cumprimento a ordens de pagamento em reais recebidas do exterior, mediante a utilização de recursos em moeda nacional mantidos em contas de depósito de titularidade de instituições bancárias domiciliadas ou com sede no exterior. A Resolução CMN n° 3.657/ 2008 eliminou a restrição de recebimento em reais de receita de exportação registrada em moeda estrangeira.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

AJUSTE ECONOMICO COM CRESCIMENTO E REDUÇÃO DA DESIGUALDADE
Maria Celina Arraes[1]

Variações sobre o tema do título foram manchete no Brasil durante o Fórum Econômico Mundial, quando de notícias sobre uma sessão em que participaram o Ministro da Fazenda Henrique Meirelles e a Diretora Gerente do FMI Christine Lagarde - em que esta afirmou que a redução da desigualdade deveria ser prioridade. As manchetes procuraram apresentar um confronto direto – Lagarde contradiz Meirelles – desigualdade é prioridade - mas a leitura de várias notícias eletrônicas publicadas nos leva a interpretar que foi um debate mais elegante. No entanto o inusitado dos posicionamentos – Meirelles pelo ajuste e Lagarde redução da desigualdade - com inversão de prioridades costumeiras dá motivo para reflexão.

O mandato do Fundo foi atualizado em 2012 para cobrir todas as questões macroeconômicas e do sistema financeiro que possam ter consequências sobre a estabilidade global. Nesse sentido, já faz quatro anos que a Diretora Gerente trouxe o tema desigualdade ao Fórum de Davos, um tópico que foi um dos mais importantes no Fórum de 2017. Desigualdade pode chegar a níveis críticos que ameacem a estabilidade global, principalmente pela via política.

Não é a primeira vez que o FMI manifesta preocupação sobre o tema de ajuste com crescimento. Já nos anos oitenta, a propósito da crise da dívida externa, os países em desenvolvimento vinham defendendo em vários foros (principalmente no Grupo dos Vinte e Quatro) que, dado o tamanho do problema da dívida externa, o ajuste deveria ser de prazo mais longo e com recursos adicionais suficientes para proporcionar a manutenção de algum crescimento nas economias.[2] Para combater a desigualdade é necessário que haja mais riqueza para ser dividida, conseguida por meio de maior produtividade e crescimento sustentável de longo prazo. Ademais, como o FMI foi estabelecido para promover a cooperação internacional, a prosperidade deve ser compartilhada entre países também pelos canais usuais de comércio internacional, fluxos de capital e migrações.

Um maior crescimento obviamente ajudaria a enfrentar parte do descontentamento, como o que vemos ocorrer atualmente, com sucesso de políticos que apoiam ideias de recuperação da prosperidade perdida. Como argumentado por Benjamin Friedman, economista de Harvard, em seu livro “The Moral Consequences of Economic Growth”, sob uma perspectiva histórica, um crescimento forte, compartilhado pela maior parte dos cidadãos, costuma estar associado a maior tolerância em atitudes sobre imigrantes, pessoas desfavorecidas e fortalecimento das instituições democráticas. No curto prazo, o enfrentamento da desigualdade e do descontentamento não dispensa políticas públicas de readaptação a novas condições de emprego e de tecnologia, assim como não dispensa uma rede de proteção para os mais desfavorecidos e vulneráveis.


As pesquisas do Organismo estão unificadas sob o tema crescimento inclusivo, conforme publicado também no IMF Direct (blog do FMI) em 24 de janeiro, no sentido de que crescimento não seria sustentável sem que também traga inclusão da população:

·         Deve criar empregos para que as pessoas se sintam incluídas na sociedade
·         Homens e mulheres tenham as mesmas oportunidades de participar na economia
·         Pobres e classe média também participem da prosperidade do país
·         Crescimento seja compartilhado não somente entre a geração presente, mas também com gerações futuras, por meio de maior resiliência de um país a mudanças climáticas e desastres naturais.
·         Inclusão financeira que faz diferença nos níveis de investimento, e contribui para suavizar flutuações adversas de renda que tenham efeito sobre segurança alimentar e saúde.
·         Governança para evitar que quando um país descubra novas fontes de recursos naturais a riqueza não seja captada apenas por alguns

A retórica pelo crescimento, agora acrescida de questões de desigualdade, data de pelo menos trinta anos. A verificar se a preocupação com crescimento e redução das desigualdades se traduzirá na prática em programas de ajustamento do Organismo mais inovadores e que contemplem medidas compatíveis com o resultado advogado. Ou se apenas justificará medidas de ajuste estrutural e aumento de produtividade que já fariam parte das recomendações de qualquer maneira.
06.02.2017






[1] Consultora do PNUD para mercados inclusivos e inclusão financeira e Diretora do Banco Central (2008-2009)
[2] Veja Arraes, Maria Celina e Rocha e Silva, Olavo Cesar “ O FMI e o Ajuste com Crescimento – Mito e Realidade, no Linkedin  de Maria Celina Arraes ou no blog http://sistmonint.blogspot.com.br/

sábado, 4 de fevereiro de 2017

O texto abaixo foi produzido em outubro de 1987 e publicado no jornal Diário Comércio e Indústria - DCI na edição de sábado 24 e 2a feira 26 de outubro de 1987. Resolvi publicá-lo agora, 30 anos depois, em janeiro de 2017, pela atualidade das discussões nas quais o FMI vem defendendo a prioridade do combate a desigualdade, o que é muito difícil de se fazer sem crescimento. Ao final do texto de 1987, se conclui que a discussão demoraria ainda algum tempo. 

Trinta anos?

O FMI E O AJUSTAMENTO COM CRESCIMENTO
- Discurso e Realidade -

 Maria Celina Arraes e Olavo Cesar da Rocha e Silva[1]

A discussão sobre se o Brasil deve recorrer ou não ao Fundo Monetário Internacional envolve uma série de problemas e argumentos que devem ser melhor explicitados e analisados.

Existem três pontos que constituem uma “ladainha” repetida em uníssono pelo corpo técnico do FMI:

(a)   Não obstante preocupar-se com o problema do crescimento, o FMI não é uma agencia para financiamento do desenvolvimento;
(b)   Os países determinaram à administração do Fundo que adote salvaguardas – leia-se condicionalidades – para garantir a recuperação dos recursos;
(c)    Os recursos emprestados são em caráter rotativo, o que implica um período de tempo bastante curto para levar em consideração os problemas de desenvolvimento.

A partir da última Assembleia do Fundo Monetário e Banco Mundial, a imprensa em geral tem destacado, com base nas declarações do Diretor-Gerente do FMI e do Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, por um lado, a imagem do FMI como órgão promotor do desenvolvimento, por outro, a possibilidade de se tornar as políticas do citado organismo menos rígidas.

Este aparente conflito desaparece se analisamos o Convênio Constitutivo do FMI. Na realidade existe inclusive um espaço para flexibilização da atuação do Organismo, dentro do próprio Convênio. Quando o Diretor-Gerente do FMI afirma aprovar as teses desenvolvimentistas, nada mais faz que reafirmar o que consta há quarenta anos como um dos objetivos da entidade:

(a)   “facilitar a expansão e o crescimento equilibrado do comércio internacional e contribuir dessa maneira para a promoção e manutenção de altos níveis de emprego e renda real e para o desenvolvimento dos recursos produtivos de todos os países membros como principais objetivos de política econômica”;

(b)   “ assegurar aos países membros que o Fundo colocará recursos à sua disposição, temporariamente, sob salvaguardas, fornecendo assim oportunidade para corrigir os desajustes do balanço de pagamentos sem ter que recorrer a medidas destrutivas da prosperidade nacional ou internacional”.

Sob o conceito de “salvaguardas adequadas” foi desenvolvida a política de condicionalidade do Fundo com a justificativa de que o Organismo deve garantir que os empréstimos contraídos sejam devolvidos nos prazos previstos no Convênio, fazendo com que os recursos sejam utilizados de maneira rotativa e temporária.

O grande problema atual é que o horizonte dos desequilíbrios de balanço de pagamentos é bem mais longo do que o que se pensava na época da eclosão da crise do petróleo, quando o FMI fez um primeiro esforço para se adequar às condições vigentes através de um aumento do período do programa de ajustamento e dos prazos de amortização. Hoje, entretanto, esta modalidade de financiamento (a chamada “facilidade ampliada”) não tem sido utilizada pela própria dificuldade de o FMI programar a prazos mais longos dentro das restrições estabelecidas.

O tratamento residual do crescimento, que poderia ser aceitável em programas de curto prazo, já não é mais viável em períodos mais longos. A variável “taxa de crescimento” passou então a ser chave para a obtenção de resultados positivos nos programas de ajustamento. No centro das discussões está a controvérsia sobre o próprio conceito de ajustamento com crescimento. De maneira geral, os organismos multilaterais advogam certos tipos de reformas estruturais (leia-se privatização, realinhamento de preços relativos, redução dos subsídios, liberalização do comércio exterior, etc.) para que, pelo uso mais eficiente dos recursos existentes, haja crescimento. Os países em desenvolvimento entendem que é primordial a necessidade de maiores investimentos.

As propostas apresentadas pelo Sec. Baker no sentido de o Fundo financiar despesas de países membros decorrentes de elevação das taxas de juros internacionais e de flexibilizar a avaliação do desempenho das economias submetidas a programas de ajustamento, poder ser interpretadas com um aumento na margem de manobra dos países em desenvolvimento. Deve ser lembrado, entretanto, que o próprio discurso explicita as condições: ampliação das condicionalidades do Organismo.

A decisão sobre se o Brasil deve ou não recorrer ao FMI está hoje carregada de componentes emocional e político que, tecnicamente é difícil analisar. Existem regras claramente estabelecidas que devemos jugar se nos convém ou não aceitar.

Sob a nossa ótica, a pré-condição para um programa de ajustamento com crescimento é a existência de adequada disponibilidade de recursos envolvida no processo, direta ou indiretamente, por bancos, organismos, governos, etc. Devemos estar, entretanto, conscientes de que algum avanço em direção de uma flexibilização dos organismos demandará, no mínimo, algum tempo.

16.10.87



[1] Maria Celina Arraes, 34, economista, é chefe da Divisão de Organismos no Departamento de Organismos e Acordos Internacionais (DEORI) do Banco Central do Brasil. Olavo Cesar da Rocha e Silva, 44, economista, é Chefe Adjunto do Departamento de Organismos e Acordos Internacionais (DEORI) do Banco Central do Brasil.

sábado, 28 de janeiro de 2017

O Fundo Monetário Internacional e o sistema monetário internacional

(Este post faz um apanhado e traduz informações disponíveis na página do Fundo Monetário Internacional sob a rubrica “fact sheets);
O Fundo Monetário Internacional (FMI) é uma organização que conta hoje com 189 países membro que trabalha para promover a cooperação monetária global, assegurar estabilidade financeira, promover o emprego e o crescimento econômico sustentável e reduzir a pobreza no mundo.
Seus objetivos originais, conforme o Convenio Constitutivo do Organismo, são:
  • Promover a cooperação monetária internacional;
  • Facilitar a expansão e o crescimento equilibrado do comércio internacional;
  • Promover a estabilidade das taxas de câmbio;
  • Apoiar o estabelecimento de um sistema multilateral de pagamentos: e,
  • Disponibilizar recursos (com as salvaguardas adequadas) aos países membros com dificuldades de balanço de pagamentos.

 Porque a ênfase do blog sistmonint nas atividades do FMI?
Porque o objetivo principal do FMI é garantir a estabilidade do sistema monetário internacional – o sistema de taxas de câmbio e pagamentos internacionais que possibilita os países e seus cidadãos transacionar uns com os outros. O mandato do Fundo foi atualizado em 2012 para cobrir todas as questões macroecomicas e do sistema financeiro que possam ter consequências sobre a estabilidade global.
Porque a estabilidade global é importante?
Ao promover a estabilidade econômica se evita crises financeiras e econômicas, grandes variações na atividade econômica, inflação alta e volatilidade excessiva nos mercados financeiro e de câmbio. A instabilidade aumenta a incerteza, desencoraja investimento e impede o crescimento econômico e atinge os padrões de vida, principalmente dos mais pobres. Uma economia dinâmica envolve algum grau de volatilidade, que possa inclusive direcional uma mudança estrutural gradual que possibilite o aumento de produtividade e o crescimento econômico

A estabilidade econômica e financeira deve ser preocupação nacional e multilateral. Como as crises financeiras recentes mostraram, as economias se tornaram mais interconectadas e, portanto, as vulnerabilidades podem se espalhar, mais facilmente, entre setores e além-fronteiras. 

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Cem anos de Alexandre Kafka


Alex para os amigos, Professor Kafka para a maioria, Mr. Kafka para o corpo técnico do Fundo Monetário Internacional (FMI). Alexandre Kafka nasceu em Praga no dia 25 de janeiro de 1917 e segundo ele mesmo dizia, ainda durante a era do império austro-húngaro. Faria, portanto, cem anos nessa semana. Formado em Direito em Praga e em economia em Oxford teve grande importância na consolidação da formação dos economistas no Brasil, pais que escolheu para sua cidadania. Informações detalhadas constam do Depoimento concedido à Fundação Getúlio Vargas e publicado como parte da coleção Memoria do Banco Central.

Chegou ao Brasil em 1940 e foi convidado para dar aulas de economia na faculdade de Sociologia da USP. Com poucos economistas formados no Brasil, a Politécnica foi mais importante na introdução de uma economia “moderna”. Até então o estudo da economia era mais dedicado a história sem um pensamento econômico muito preciso. Em São Paulo ainda atuou como consultor econômico da FIESP e participou da criação do seu departamento de Economia. Participou de diversas missões de discussão sobre a Organização Internacional do Comércio.

Veio para o Rio de Janeiro, após diversos períodos nos Estados Unidos, inclusive em universidades, após receber um convite de Eugenio Gudin para organizar o Instituto Brasileiro de Economia (IBRE), na Fundação Getúlio Vargas (FGV). Paralelamente, no papel de Conselheiro econômico da Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC) e no Ministério da Fazenda participou do debate econômico dos anos cinquenta e sessenta inclusive para criação do Banco Central do Brasil.  É dessa época a formulação juntamente com seu amigo e colega de profissão Roberto Campos das “leis de Kafka” que introduziram a hipótese segundo a qual a economia brasileira não obedecia a nenhuma das leis econômicas conhecidas. Em 2012, Gustavo Franco retomou o tema em seu livro As Leis Secretas da Economia e lançou as leis reformuladas e atualizadas, mas mantendo o espírito original. Segundo consta da tradição oral dos economistas mais antigos, uma dessas leis seria que toda tentativa de contração monetária é contrabalançada pela expansão de crédito de banco público.

Seu período como Diretor Executivo pelo Brasil, e de um grupo de países da América Latina e Caribe, foi bem intenso e começou em 1966. Com sua habilidade diplomática e capacidade técnica, sobreviveu a diferentes regimes políticos e orientações econômicas, sempre defendendo os interesses do País e não de governos. Gozava do respeito dos técnicos do FMI, o que foi fundamental nas épocas de difícil relacionamento do Brasil com o Organismo, por exemplo naquele período de inúmeras cartas de intenções, sempre descumpridas, e depois da moratória de pagamento e dificuldades com a dívida externa. Emprestava seu prestígio pessoal na defesa do país que adotou como pátria.

Teve também importante papel na institucionalização do FMI. Foi um dos quatro vice-presidentes do Grupo dos Vinte (deputies) para reforma do sistema monetário internacional, criado para adaptar os estatutos do Fundo ao fim da conversibilidade do dólar. Os quatro vices e o Presidente do Grupo, Sir Jeremy Morse, foram responsáveis pela redação discutida como os Ministros. Participou das discussões da implementação dos Direitos Especiais de Saque (DES) e da criação da Facilidade Compensatória (Compensatory Financing Facility), que servia para suavizar as flutuações dos preços das commodities.   Defendia a criação de um escritório de avaliação no FMI, ao molde do já existente no Banco Mundial, o que somente ocorreu muitos anos depois. Como decano sempre era responsável pelos procedimentos de eleição do Diretor Geral dom FMI e chamado para ajudar a resolver e negociar problemas difíceis.  Depois de sua aposentadoria o Fundo manteve durante um bom tempo um escritório para seu uso.

Na época mais recente, com o impeachment do Presidente Collor, inúmeros Ministros passaram pelo Ministério da Fazenda. Cada um que entrava fazia uma missão ao FMI, resultando, portanto, num período muito trabalhoso para o escritório do Brasil. Até que a situação se estabilizou um tempo com Fernando Henrique Cardoso. No livro Depoimento o professor Kafka conta que, apesar de o FMI considerar uma boa ideia a implementação do Plano Real em estágios – eliminação do déficit, eliminação da indexação e nova moeda – somente apoiaria o Brasil após sucesso do plano de estabilização.  O governo americano alegou que sem acordo com o FMI não poderia vender os bônus de cupom zero que faziam parte das garantias da renegociação da dívida externa. Como se sabe, o Brasil comprou os títulos no mercado e pode assim pavimentar o caminho para o sucesso do Plano Real. Já na crise de 1998 o apoio do FMI foi instrumental e total.


Morreu em novembro de 2007, aos 90 anos, depois da morte de sua esposa Dona Rita, que o deixou muito abalado.